Eu não me lembro de muita coisa.
O cheiro do verniz que meu pai
estava passando na porta me enjoou. Eu senti tontura e alguém me carregou para
o banheiro. Passaram-se oito dias. Eu acordei no sofá da casa da minha avó, o
corpo estava fraco, mas tudo o que eu queria era cantar.
Eu tinha quatro anos, e meus pais
contam que nesse intervalo de oito dias eu fui internada, fizeram vários
exames, e ninguém descobria o motivo da minha fraqueza e porque eu emagrecia
tão rápido. No sexto dia, eu não conseguia mais andar, não comia e não tomava
água e os médicos acharam melhor que eu fosse pra casa passar meus últimos
momentos de vida. No sétimo dia, o clima de morte se instaurou na casa da minha
avó e aí todos esperavam o pior.
No oitavo dia, eu não abria mais os
olhos e não respondia mais aos chamados dos meus pais. O pastor da igreja foi
avisado que eu estava morrendo, os familiares, todo mundo estava vindo tentar
assistir o meu último suspiro.
E eu dei o último suspiro no colo
da minha mãe.
Meus lábios ficaram roxos, minhas
mãos começaram a ficar geladas, e foi aí que minha mãe pensou que, depois de
perder uma filha, ela ficaria com um marido louco. Meu pai andava de um lado
para o outro gritando e clamando a Deus, implorando que ele me devolvesse à
vida. Mas o silêncio pairava sobre a nuvem da morte na sala da casa da minha
avó.
Foi aí que meu pai se lembrou de
quem eu era. Eu cantava na igreja desde os dois anos, as pessoas achavam aquilo
bonitinho, e pessoas de outras igrejas vinham só pra ver a menininha de dois
anos cantando no meio dos adultos. Meu pai começou a cantar.
Louco, né? A filha morta e o pai
cantando. Ele cantava aquela música do Adhemar “Ele é exaltado, o Rei é
exaltado no céu, eu louvarei”, e no meio do refrão, eu abri os olhos. Eu
respirei profundamente. Meu rosto foi tomando cor, minhas mãos se moveram e
minhas pernas se fortaleceram.
Eu me lembro de levantar, caminhar
até o aparelho de som, e pedir pro meu pai colocar a música do Mattos
Nascimento “Sou Feliz”, e quando eu estava cantando o trecho “o meu estado era
pra morrer, mas recebi perdão”, eu vi o pastor em lágrimas me olhando pela
janela da sala.
E foi assim que eu cresci: sabendo
que tinha morrido e ressuscitado porque o Deus que meus pais serviam era
poderoso para fazer isso e muito mais.
Durante algum tempo eu contava o
testemunho com certa empolgação, mas aí eu comecei a esperar que Deus fosse
retribuir certas coisas que eu fazia, e eu obtinha um silêncio tão desagradável
que eu comecei a pegar raiva de Deus. E aí já não fazia sentido ter voltado à
vida, porque o que eu queria mesmo era ter morrido aquele dia.
Certo dia, observando o brilho nos
olhos dos meus pais enquanto eles contavam o meu testemunho para um casal de
amigos, eu cheguei à conclusão de que o que tinha acontecido comigo tinha sido
para eles, não para mim. Que, no final das contas, Deus se importava mais com
meus pais do que comigo.
Eu deixei essa ideia petrificar em
mim, e nada mais me emocionava quando se tratava de Cristo. Até o dia que
Cristo me olhou nos olhos e me falou de onde eu vinha e quem eu era.
Afinal, não foi isso o que Cristo
fez com a mulher de Samaria?
Eu andava de cabeça baixa, falando
de um Cristo ausente em mim, vivendo um cristianismo raso e indefinido, e Ele me
olhou nos olhos e disse de onde eu vinha. Aquele fôlego que Ele me devolveu na
sala da casa da minha avó ainda entra em mim todas as vezes que inspiro. Aquela
força que tenho todos os dias quando levanto da cama é a mesma força que Ele me
devolveu quando estava morta.
Cristo me deixou caminhar por onde
eu quis, eu deixei de ver os seus sinais, a cerca do pasto onde eu estava me
distanciava daquele que um dia se importou comigo ao ponto de atravessar o
tempo e me devolver à vida.
Ele sabia das marcas, frustrações,
traumas... Ele sabia exatamente quem eu era e o que pensava a Seu respeito. E
sabe o que Ele fez comigo? Ele me deixou beber da sua fonte, ele arrastou a
bacia para o meu lado e lavou meus pés, ele arrancou a espada da minha mão e me
ensinou a amar, ele fez lodo com cuspe e passou nos meus olhos, ele me abraçou
e sussurrou “seja purificada”, ele me motivou e disse “ânimo, filha, a tua fé
te curou dos medos, dos traumas, das decepções”, ele me amou e eu só conseguia
dizer “nunca vi nada parecido com isso em toda a minha vida”.
Ele sabe de onde você veio, ele
sabe quais caminhos você percorreu até chegar onde você está, ele sabe quem
você é e o que pensa a respeito dele. E é exatamente por saber de tudo isso que
ele te ama e quer caminhar contigo e te ensinar a ser Dele e viver pra Ele.
Num momento onde o evangelho está
tão distorcido, onde pessoas usam o altar para promover o comércio, a gente
fica perdido quando encontra Cristo. Eu vivi essa experiência, e posso afirmar
que o Espírito Santo cuida exatamente disso. Ele nos dá a revelação da Palavra
e envia pessoas para nos ajudar em todos os momentos.
A cruz não é o que te afasta, não é
o que te amedronta, não é o que te puni. A cruz é o que te atrai. Sinta-se
atraído, e se entregue.
Se entregue. Se entregue e confie.
Depois que os seus olhos cruzarem com os olhos de Cristo, você nunca mais será
o mesmo.
Até quarta, gente!
May Freire
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